sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Uma Letra da Torá

O objeto mais sagrado no judaísmo é o Sefer Torá, o pergaminho da Lei. Escrito hoje exatamente como há milhares de anos, a mão, com uma pena, sobre pergaminho, simboliza algumas das nossas crenças mais profundas: a de que D-us é encontrado nas palavras, que estas palavras estão na Torá, e que elas constituem a base do pacto – o vínculo de amor – entre D-us e o povo judeu.

Eu me pergunto se algum povo jamais amou um livro tanto quanto nós amamos a Torá. Nos levantamos quando ela passa, como se fosse uma rainha. Dançamos com ela como se dança com uma noiva. Se danificada ou destruída, nós a sepultamos, da mesma forma que sepultamos um amigo ou parente. Nós a estudamos ininterruptamente, como se ela encerrasse todos os segredos da nossa existência. Heinrich Heine certa vez chamou a Torá de “a terra ancestral portátil”, querendo dizer que quando não tínhamos nossa terra, encontramos um lar nas palavras da Torá. Ainda mais eloqüente, o Baal Shem Tov, fundador do Chassidismo no século XVIII, disse que o povo judeu é um Sefer Torá vivo, e que cada judeu é uma de suas letras. Esta imagem me emociona, e me leva a uma pergunta – a pergunta: Será que nós também somos letras no pergaminho sagrado do nosso povo?

Em alguma etapa da vida, precisamos decidir como vamos viver. Temos muitas opções, e geração alguma conheceu tantas delas. Podemos viver para o trabalho, para o sucesso, a riqueza, a fama ou o poder. À nossa escolha, está toda uma série de estilos de vida e tipos de relacionamentos.

Podemos explorar um imenso número de crenças, vertentes místicas e terapias. Há uma única limitação: Nós temos apenas uma vida, e ele é curta. Como vivemos e em nome do quê vivemos são as decisões mais determinantes que temos a tomar. Podemos ver a vida como uma sucessão de momentos que gastamos, como moedas, em troca de uma infinidade de prazeres. Ou, então, podemos vê-la como a uma letra do alfabeto. Sozinha, uma letra não tem significado. Mas, combinada a outras letras, forma uma palavra que, ao lado de outras, forma uma sentença. Unidas, as sentenças se tornam parágrafos, e parágrafos em seqüência contam uma história. Assim o Baal Shem Tov entendeu a vida. Cada judeu é uma letra. Cada família é uma palavra; cada comunidade, uma sentença, e o povo judeu é um parágrafo. Sua saga através dos séculos constitui uma história, a mais estranha e comovente entre todas as que compõem a grande História da humanidade.

A metáfora do Baal Shem Tov é, para mim, a chave que permite compreendermos por que nossos ancestrais decidiram continuar como judeus, mesmo nas épocas mais terríveis. Suspeito que eles soubessem ser, cada um, uma letra desta história de perigo e coragem. Seus próprios ancestrais arriscaram-se a selar um pacto com D-us, o que lhes conferiu um papel muito especial na história. Eles partiram para uma jornada que começou no passado distante e prossegue nos passos de cada nova geração. No coração do pacto vive o conceito de Emuná, a fé que se traduz em fidelidade e lealdade. Ao dar continuidade à sua história, os judeus provam ser tão leias às gerações passadas quanto àquelas que ainda não nasceram. Um Sefer Torá ao qual falta uma letra é declarado inválido, defeituoso. Acredito que a maioria dos judeus nunca tenha desejado ser esta letra ausente. O que mudou, então? Por que a voz da lealdade ao passado e ao futuro não é mais ouvida entre um número tão grande de jovens judeus? Penso que a resposta esteja em um dos grandes confrontos entre o judaísmo e o pensamento moderno.

O judaísmo é uma religião iconoclasta que muitas vezes desafiou as certezas de uma era, e é difícil recapturar o caráter dramático destes episódios depois de tantos séculos. Para nós, são mais do que evidentes as razões que levaram Abrahão a acreditar em um D-us único, que fizeram Moisés lutar contra a escravidão do seu povo, que motivaram os profetas a denunciar a corrupção na vida pública. Seus feitos são nossa herança. Vemos o mundo através de seus olhos, e é difícil entendermos como as pessoas puderam pensar de outra forma. A história é o passado relatado pelos vitoriosos, e os judeus conheceram muitas vitórias morais. Como Thomas Cahil aponta em seu livro "A Dádiva dos Judeus”, a civilização ocidental é em grande parte moldada por conceitos que foram articulados pela primeira vez por judeus.

Nossas vitórias, no entanto, nunca foram fáceis de alcançar. Ao contrário: sempre que ocorreram, implicaram o questionamento de verdades tidas como primárias em suas épocas. A visão espiritual dos heróis e heroínas da vida judaica foi, quando formulada pela primeira vez, uma concepção severa, estranha, contrária à própria intuição humana. Não por acaso, Moisés, Isaías e Jeremias reclamam da dificuldade que tiveram para transmitir ao povo a palavra de D-us. Querem dizer com isto que não lhes foi fácil encontrar os termos que puderam ser compreendidos por seus contemporâneos. E eles não foram os últimos a se queixar. O judaísmo é o eterno ponto de interrogação Divino face à sabedoria convencional da humanidade, e este tem sido o perfil da identidade judaica nos tempos modernos. Trata-se de uma identidade que se expressa através de uma certa linguagem, de uma determinada maneira de pensar e de ver o mundo que dificilmente encontra tradução fiel no universo dos conceitos hoje utilizados.

Desde o Renascimento, séculos de pensamento ocidental acabaram por nos fazer acreditar que, a partir do momento em que escolhemos como viver, estamos livres de vínculos. Nada nos prende ao passado. Somos quem e o quê decidimos ser. É uma ótica tão axiomática que não nos deixa enxergar a história intelectual que tem por trás de si. Identificamos, porém, alguns momentos chave desta história: quando David Hume, no século 18, afirmou que “ser” não poderia, em instância alguma, implicar “dever”, ou quando Kant colocou o conceito de autonomia no centro da vida moral, ou ainda quanto Jean-Paul Sartre, o existencialista do século 20, argumentou que, em cada um de nós, a “existência precede a essência”. Esta longa e cumulativa linha de pensamento nos levou a acreditar que identidade é algo que escolhemos, livres de qualquer vínculo com o passado. Fato algum define nossas obrigações, e a história não determina nosso papel. Chegamos ao mundo com uma tela em branco nas mãos, e sobre ela podemos traçar o auto-retrato que quisermos.

Frente a tal complexo de idéias, a vida judaica é uma perene voz dissonante. Ser judeu é saber que esta não pode ser toda a minha história. Uma melodia é mais do que uma simples reunião de notas musicais. Uma pintura não é um conjunto de pinceladas feitas ao acaso. A seqüência das partes que compõem um todo tem um porquê, e a história só faz sentido quando as vidas daqueles que a escrevem são ligadas umas às outras, como as dos personagens de uma narrativa, como as das figuras de um drama em andamento. De outra forma, seria impossível falar sobre significado – e o judaísmo é a insistência de que a história tem um significado. Daí, inferimos que cada um de nós tem um significado preciso dentro da história judaica, a extraordinária história de um povo devotado a certas idéias. Nós não somos átomos flutuando livremente no espaço. Nós somos letras da Torá.

Uma forma de tornar nítido o contraste é imaginar uma visita a uma enorme biblioteca. As estantes repletas vão do piso ao teto, de parede a parede. Estamos cercados por livros que expõem o pensamento de um grande número de pessoas (algumas delas ilustres; outras, nem tanto) e basta estendermos o braço para apanhar qualquer um deles. Tudo o que temos a fazer é escolher. Começamos a ler e, por um período, mergulhamos no mundo real ou fictício do autor. Se nos agradar o bastante, podemos procurar mais volumes escritos pela mesma pessoa, ou outras obras sobre o mesmo assunto. E nada nos impede de interromper a leitura e buscar novos títulos que chamem nossa atenção. Não existem limites. Quando perdemos o interesse, simplesmente colocamos o livro de volta na estante, onde ficará até atrair outro leitor. Não há compromisso. É apenas um livro.

Assim é a identidade para a cultura secular contemporânea do ocidente. Escolhemos este ou aquele livro por mera curiosidade momentânea. Há muitas maneiras de viver e nenhuma delas pede coisa alguma em troca, ou define quem somos com mais acuidade do que outra. Podemos experimentar qualquer uma pelo tempo que quisermos. Como leitores casuais, permanecemos intactos, intocados. Os vários estilos de vida que adotamos são como os livros que escolhemos aleatoriamente na grande biblioteca. Sempre podemos substituí-los, devolvê-los aos seus respectivos nichos. Eles são o que lemos, e não o que somos.

O judaísmo nos pede para considerar uma possibilidade totalmente diferente. Imagine que, ao perambular entre as estantes da biblioteca, você veja um livro que em nada se parece com os outros. Ele captura sua atenção porque o título é o nome de sua família. Intrigado, você passa a folheá-lo e nota, pelas distintas caligrafias, que as páginas foram escritas por várias pessoas em diversos idiomas. Então, começa a ler e, aos poucos, vai compreendendo o conteúdo. É a história de cada geração de seus ancestrais. Eles tiveram o cuidado de registrá-la para que a geração seguinte pudesse conhecê-la. Assim, todos aqueles nascidos no seio desta família podem saber de onde vieram seus antepassados, o que aconteceu com eles ao longo do tempo, em nome do quê viveram e porquê. Você continua a virar as páginas e vê que a última está em branco, com exceção do cabeçalho, Ele traz o seu nome.

De acordo com as convenções intelectuais da modernidade, o fato não deveria fazer diferença. Não há nada no passado que possa influenciar seu presente; não há história que possa determinar quem você é e tem a liberdade de ser. Mas esta não pode ser toda a verdade. Minha vida, por exemplo, mudaria por completo no instante em que eu o tivesse nas mãos. Meu nome, a vida dos meus ancestrais... Não, eu nunca poderia lê-lo como a outro livro qualquer, porque ele me levaria a descobrir quem sou. Tampouco poderia ignorá-lo, devolvê-lo à prateleira. Graças a ele, eu agora saberia ser parte de um antigo povo, um povo cuja jornada em direção a um certo destino ainda não terminou, e que cabe a mim levá-la adiante.

Este conhecimento impede que eu continue a encarar o mundo como uma biblioteca. É verdade, há uma série de outros livros à disposição, e alguns deles podem ser interessantes, inspiradores, envolventes. Mas este livro é diferente. Sua mera existência implica uma série de questões dirigidas exclusivamente a mim. Escreverei meu próprio capítulo? Ele será uma seqüência dos relatos daqueles que me antecederam? Será que, no momento propício, eu passarei o livro aos meus filhos? Ou terei me esquecido dele, ou então o doado para um museu como antigo objeto herdado?

Isto é mais do que um exercício de imaginação. O livro da nossa história existe, e cada judeu é uma vida – um capítulo – dele. É o livro onde está escrito quem sou eu, e talvez seja o que de mais valioso eu possa receber. Para sentir que fazemos parte de um todo, precisamos conhecer um pouco de nossa história pessoal. Precisamos saber quem nos concebeu, saber de onde vieram e qual é sua história. A necessidade torna-se mais aparente nos casos em que, por qualquer razão, a informação não se encontra disponível. Uma criança adotada quase sempre tem curiosidade a respeito de seus pais naturais, uma curiosidade que às vezes pode beirar a obsessão. O mesmo acontece com uma criança abandonada por um dos pais antes que tivessem a chance de estabelecer um relacionamento. Não saber quem sou pode me fragilizar e me fazer sentir menos do que inteiro. A questão da identidade é fundamental, e não pode ser respondida se eu não conhecer meu passado.

Nós somos, cada um de nós, muitas coisas – cidadãos de um país, habitantes de uma região, moradores de um bairro, integrantes de um grupo. Temos amizades, responsabilidades, paixões e preocupações que compõem nossa personalidade, mas não retratam o âmago de nossa identidade. Um exemplo: posso ser um advogado preocupado com o meio ambiente, um cidadão americano vivendo em Seattle que adora os filmes de Steven Spielberg e o humor de Woody Allen. Estes são fatos a meu respeito – o que faço, com o que me preocupo, onde moro, do que gosto. Eles não dizem quem sou eu. Podem mudar com o passar do tempo sem que eu deixe de existir. A resposta mais fundamental à pergunta que nunca muda, “Quem sou eu?”, envolve uma jornada que passa por meus pais, meus avós, e chega ao ponto mais distante possível na linha do tempo que abriga meus ancestrais. É minha também, a história dos que vieram antes de mim. Eu posso escolher não dar continuidade a ela, mas negá-la significa, de certa forma, viver uma mentira. Porque minha identidade começa com a história da minha família.

A questão moderna tem, quem diria, um eco bíblico. A primeira pergunta que Moisés fez a D-us foi “Mi anochi?” – “Quem sou eu?”. Humilde, ele deseja saber se tem mérito pessoal suficiente para levar os israelitas à liberdade. Mas ouve-se também o reverberar de uma crise de identidade, tão familiar nos dias de hoje quanto rara na época. Afinal, quem foi Moisés? Uma criança escondida em
uma cesta de junco, encontrada e adotada por uma princesa egípcia, que recebeu um nome egípcio e cresceu no palácio do faraó. Muitos anos depois, quando circunstâncias o obrigaram a sair do país e refugiar-se em Mídia, ele teve a oportunidade de salvar as filhas de Jetró, que disseram a seu pai: “Um egípcio nos trouxe até aqui”. Moisés tinha o aspecto, a linhagem e as vestimentas de um egípcio. Mas o texto nos conta que, quando homem feito, ele “foi aos seus irmãos e viu seu fardo”. De alguma maneira, sabia que os israelitas escravizados eram “seus irmãos”. Criado como um egípcio, Moisés era um judeu.

A mente dá voltas frente a uma escolha como a que lhe coube fazer. De um lado, estava a vida de regalias e poder como príncipe na corte do faraó; de outro, a perspectiva de anos de dificuldade e privação como membro de uma nação de escravos. Mas quando D-us lhe diz “Eu sou o D-us de teu pai, o D-us de Abrahão, o D-us de Isaac e o D-us de Jacob”, a crise de identidade de Moisés se resolve e nunca mais reaparece daquela forma. Agora, Moisés sabe que é parte de uma história que começou com os Patriarcas e continua através dele. Suas roupas e seu idioma podem ser de um egípcio, mas ele é um judeu porque judeus foram seus ancestrais, os que nele depositam suas esperanças. A questão hoje à nossa frente é pouco usual, mas não inédita: cada um de nós também tem que escolher, como Moisés. Fazemos parte do universo cultural característico das democracias liberais de nossos antepassados e do destino que une nossas vidas às deles. Há uma diferença entre onde estamos e o quê somos. O judaísmo não está errado ao vincular identidade e nascimento, ainda que esta ótica se oponha totalmente à essência da cultura pós-renascentista.

O fato de termos nascido judeus não é um fato qualquer. Ele só aconteceu porque mais de cem gerações de ancestrais decidiram ser e permanecer judeus, transmitindo esta identidade aos seus filhos, e escrevendo assim a mais notável história de continuidade de que se tem notícia. Nunca foi uma decisão tomada ao acaso. Ela tem suas raízes na convicção primeira dos nossos antepassados, a de que os judeus haviam firmado um pacto com D-us, um pacto que os levaria a uma jornada cujo destino se encontrava no futuro distante, mas que teria imensa importância para a humanidade. A jornada em si era o tema da próxima etapa da minha pesquisa, mas um fato ficou claro desde o princípio: ela não seria cumprida facilmente. Ao contrário de quase todas as outras visões da sociedade ideal, os judeus sabiam que a sua seria fruto do trabalho de muitas gerações. Por isto, tinham o dever de passar seus ideais às crianças – para que elas também pudessem tomar parte na jornada; ser letras da Torá. Ser um judeu, hoje como nos dias de Moisés, é ouvir o chamado daqueles que vieram antes de nós e saber que somos os guardiões de sua história.

Já no final da vida, o grande historiador não judeu A. L. Rowse publicou suas memórias e, em uma das últimas páginas do livro, escreveu um frase surpreendente: “Se há no mundo algum título que eu gostaria de ter, seria o de judeu honorário”. O sonho não realizado de Rowse é o direito inato dos judeus. Somos herdeiros do livro escrito por nossos ancestrais e uma das letras, apenas nós podemos escrever.

Eu sou judeu porque, conhecendo a história do meu povo, ouço seu chamado para escrever o próximo capítulo. Eu não vim do nada. Tenho um passado, e ele exerce sua autoridade sobre mim. Eu sou um judeu porque somente se eu permanecer judeu manterei viva a história de cem gerações. Sigo na jornada que iniciaram porque, tendo chegado tão longe, não permitirei que seja interrompida. Não serei eu a letra a faltar na Torá. Não posso oferecer uma resposta mais simples, e desconheço outra que seja mais poderosa.

(Resposta a pergunta "Por que ser Judeu?". Extraído do livro – Uma Letra da Torá da autoria do Rabino Jonathan Sacks Editora e Livraria Sefer Ltda – São Paulo - 2002.)